Não bastou matar São Sepé Tiaraju. Era preciso matar também a sua história.
Acaba de ser posto abaixo pelo poder municipal de São Gabriel um monumento a São Sepé Tiarajú e 1.500 companheiros mártires. Esse desrespeito aos que souberam dar a vida em favor dos irmãos do Povo Guarani e das próprias Missões Jesuíticas, se insere numa sequência de antecedentes que parecem não ter fim.
Tão logo Sepé Tiaraju e o exército guarani, no ano de 1756, foram chacinados pelos exércitos unidos de Espanha e Portugal, impérios mais fortes do mundo da época, a terra que até então era posse comunitária de todo um povo, teve como sucedânea uma economia de latifúndio. Grandes extensões de campo, denominadas sesmarias, começaram a ser apropriadas, começando pelos próprios oficiais comandantes “vencedores” da guerra guaranítica. Além da terra e das sete lindas cidades missioneiras, havia vários milhões de cabeças de gado no pampa, fruto do trabalho dos índios. Não é por acaso que até os dias de hoje, a cidade de São Gabriel, onde o povo guarani travou as batalhas definitivas, é o coração do latifúndio que é predatório de terra e opressor de gente, um dos exemplos brasileiros mais significativos da urgência em se realizar a reforma agrária.
No ano de 1956, quando se completavam os 200 anos do martírio do herói popular Sepé Tiaraju, surgiu um movimento no Rio Grande com vistas a levantar um monumento em praça pública de Porto Alegre, em honra ao “índio do grito”. A pressão bateu às portas do palácio Piratini, sede do governo do Estado. Ildo Meneghetti achou por bem consultar o Instituto Histórico e Geográfico. Esta instituição deu um parecer totalmente contrário dizendo em síntese: “Sepé Tiaraju, herói português não é, porque combateu contra o império de Portugal. Tampouco é herói espanhol pelos mesmos motivos: combateu contra Espanha. Herói brasileiro menos ainda, porque o Brasil nem existia". A conclusão foi contundente: “Quem pariu mateus que o embale. Quando muito Tiaraju talvez possa ser herói jesuítico pois foram os padres que deram origem a essa figura. Eles então que lhe levantem o monumento que quiserem”. Sepé acabava de ser morto mais uma vez. Aos dois impérios que esbulharam as terras do povo guarani, governo e classe dominante do Rio Grande sucediam-lhes em crueldade, sem solução de continuidade.
No ano de 1948, uma equipe de alunos do colégio secundário “Júlio de Castilhos”, filhos de grandes fazendeiros da fronteira, saudosos da vida em suas fazendas do interior, inventaram um movimento gauchista. Adotaram a estância latifundiária dos fins do século XIX e começos do século XX como modelo e padrão do seu tradicionalismo. O MTG que anda espalhadíssimo por aí, não só no Rio Grande mas por todo o Brasil e mesmo fora do país, foi fabricado artificialmente e se consagrou como um tradicionalismo de CTG. É um gauchismo de classe dominante. Um gauchismo ou tradicionalismo às avessas, de cima para baixo. Os pobres do Rio Grande nada tem a ver com ele, nem ontem nem hoje.
O gauchismo do povão que vinha até então, isto é, até esse outro inventado pelos jovens estudantes, vinha sendo pautado, entre muitos, pelos escritores Simões Lopes Neto, Érico Veríssimo e Manoelito de Ornelas. Tem como ato fundante as Missões Jesuíticas com seu mais belo florão, São Sepé Tiaraju, ampliado depois pelos negros quilombolas com a história do Negrinho do Pastoreio e hoje apoiado integralmente pelos movimentos populares, principalmente pelos Sem-Terra e os pequenos agricultores, os operários, os desempregados, os catadores, etc. Infelizmente o gauchismo da classe dominante, o de CTG, continua sendo hegemônico até os dias de hoje.
No ano de 2006, por ocasião dos 250 anos do martírio de São Sepé e dos Missioneiros, os movimentos populares do Rio Grande se uniram e, através de uma lei aprovada por unanimidade pela Assembléia Legislativa, São Sepé Tiaraju foi proclamado herói guarani, missioneiro e rio-grandense. Foi dando concretude a essa lei assinada por todos os deputados e pelo poder executivo do estado que levantamos o Oratório-Monumento em honra de Sepé e companheiros mártires, lutadores em defesa de terra e pátria para o povo guarani. Tivemos o cuidado de erguê-lo na Sanga da Bica, no lugar exato em que tombou Sepé, por ser o primeiro monumento ao santo canonizado pelo povo.
Nesse mesmo ano de 2006, a imprensa registrou através de várias manchetes, a apropriação que os movimentos populares conseguiram fazer da figura histórica de Sepé Tiaraju, contra a classe dominante, especialmente os latifundiários que queriam se adonar do índio mártir e particularmente do seu brado histórico: “Esta terra tem dono pois foi Deus e o Arcanjo São Miguel que no-la deram em herança”.
Os latifundiários como anti-povo, tinham e têm em vista a apropriação do “índio do grito” em defesa da propriedade ferrenha das terras como latifúndios, em contraposição com os pobres Sem-Terra que desejam a posse comunitária ou então como pequenas propriedades rurais destinadas à agricultura familiar ecologicamente correta.
A classe hegemônica dos grandes proprietários rurais começa a sentir que está perdendo a guerra ideológica de seu individualismo capitalista para uma economia mais solidária de pequenas propriedades familiares ou comunitária, de associações populares e cooperativas.
Perdida a guerra ideológica contra o povão, só resta o vandalismo até mesmo em cima dos símbolos, como é o caso desse oratório-santuário que acaba de ser demolido. É de se esperar que o Ministério Público do Estado e a Procuradoria da República nesta região do país, pelo menos desta vez, não acrescente à perseguição que movem contra os pobres Sem-Terra, a ignomínia de se omitir diante desse novo massacre, praticado contra a memória de uma das mais contundentes provas históricas de que o sacrifício atual desses pobres não difere em nada daquele que matou São Sepé.
Artigo de Antônio Cechin e Jacques Távora Alfonsin. Publicado no portal IHU, da Unisinos.
Tão logo Sepé Tiaraju e o exército guarani, no ano de 1756, foram chacinados pelos exércitos unidos de Espanha e Portugal, impérios mais fortes do mundo da época, a terra que até então era posse comunitária de todo um povo, teve como sucedânea uma economia de latifúndio. Grandes extensões de campo, denominadas sesmarias, começaram a ser apropriadas, começando pelos próprios oficiais comandantes “vencedores” da guerra guaranítica. Além da terra e das sete lindas cidades missioneiras, havia vários milhões de cabeças de gado no pampa, fruto do trabalho dos índios. Não é por acaso que até os dias de hoje, a cidade de São Gabriel, onde o povo guarani travou as batalhas definitivas, é o coração do latifúndio que é predatório de terra e opressor de gente, um dos exemplos brasileiros mais significativos da urgência em se realizar a reforma agrária.
No ano de 1956, quando se completavam os 200 anos do martírio do herói popular Sepé Tiaraju, surgiu um movimento no Rio Grande com vistas a levantar um monumento em praça pública de Porto Alegre, em honra ao “índio do grito”. A pressão bateu às portas do palácio Piratini, sede do governo do Estado. Ildo Meneghetti achou por bem consultar o Instituto Histórico e Geográfico. Esta instituição deu um parecer totalmente contrário dizendo em síntese: “Sepé Tiaraju, herói português não é, porque combateu contra o império de Portugal. Tampouco é herói espanhol pelos mesmos motivos: combateu contra Espanha. Herói brasileiro menos ainda, porque o Brasil nem existia". A conclusão foi contundente: “Quem pariu mateus que o embale. Quando muito Tiaraju talvez possa ser herói jesuítico pois foram os padres que deram origem a essa figura. Eles então que lhe levantem o monumento que quiserem”. Sepé acabava de ser morto mais uma vez. Aos dois impérios que esbulharam as terras do povo guarani, governo e classe dominante do Rio Grande sucediam-lhes em crueldade, sem solução de continuidade.
No ano de 1948, uma equipe de alunos do colégio secundário “Júlio de Castilhos”, filhos de grandes fazendeiros da fronteira, saudosos da vida em suas fazendas do interior, inventaram um movimento gauchista. Adotaram a estância latifundiária dos fins do século XIX e começos do século XX como modelo e padrão do seu tradicionalismo. O MTG que anda espalhadíssimo por aí, não só no Rio Grande mas por todo o Brasil e mesmo fora do país, foi fabricado artificialmente e se consagrou como um tradicionalismo de CTG. É um gauchismo de classe dominante. Um gauchismo ou tradicionalismo às avessas, de cima para baixo. Os pobres do Rio Grande nada tem a ver com ele, nem ontem nem hoje.
O gauchismo do povão que vinha até então, isto é, até esse outro inventado pelos jovens estudantes, vinha sendo pautado, entre muitos, pelos escritores Simões Lopes Neto, Érico Veríssimo e Manoelito de Ornelas. Tem como ato fundante as Missões Jesuíticas com seu mais belo florão, São Sepé Tiaraju, ampliado depois pelos negros quilombolas com a história do Negrinho do Pastoreio e hoje apoiado integralmente pelos movimentos populares, principalmente pelos Sem-Terra e os pequenos agricultores, os operários, os desempregados, os catadores, etc. Infelizmente o gauchismo da classe dominante, o de CTG, continua sendo hegemônico até os dias de hoje.
No ano de 2006, por ocasião dos 250 anos do martírio de São Sepé e dos Missioneiros, os movimentos populares do Rio Grande se uniram e, através de uma lei aprovada por unanimidade pela Assembléia Legislativa, São Sepé Tiaraju foi proclamado herói guarani, missioneiro e rio-grandense. Foi dando concretude a essa lei assinada por todos os deputados e pelo poder executivo do estado que levantamos o Oratório-Monumento em honra de Sepé e companheiros mártires, lutadores em defesa de terra e pátria para o povo guarani. Tivemos o cuidado de erguê-lo na Sanga da Bica, no lugar exato em que tombou Sepé, por ser o primeiro monumento ao santo canonizado pelo povo.
Nesse mesmo ano de 2006, a imprensa registrou através de várias manchetes, a apropriação que os movimentos populares conseguiram fazer da figura histórica de Sepé Tiaraju, contra a classe dominante, especialmente os latifundiários que queriam se adonar do índio mártir e particularmente do seu brado histórico: “Esta terra tem dono pois foi Deus e o Arcanjo São Miguel que no-la deram em herança”.
Os latifundiários como anti-povo, tinham e têm em vista a apropriação do “índio do grito” em defesa da propriedade ferrenha das terras como latifúndios, em contraposição com os pobres Sem-Terra que desejam a posse comunitária ou então como pequenas propriedades rurais destinadas à agricultura familiar ecologicamente correta.
A classe hegemônica dos grandes proprietários rurais começa a sentir que está perdendo a guerra ideológica de seu individualismo capitalista para uma economia mais solidária de pequenas propriedades familiares ou comunitária, de associações populares e cooperativas.
Perdida a guerra ideológica contra o povão, só resta o vandalismo até mesmo em cima dos símbolos, como é o caso desse oratório-santuário que acaba de ser demolido. É de se esperar que o Ministério Público do Estado e a Procuradoria da República nesta região do país, pelo menos desta vez, não acrescente à perseguição que movem contra os pobres Sem-Terra, a ignomínia de se omitir diante desse novo massacre, praticado contra a memória de uma das mais contundentes provas históricas de que o sacrifício atual desses pobres não difere em nada daquele que matou São Sepé.
Artigo de Antônio Cechin e Jacques Távora Alfonsin. Publicado no portal IHU, da Unisinos.
Foto: Estátua de São Sepé Tiaraju, na cidade de São Luiz Gonzaga, RS.
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