Por Ayrton Centeno
Há uma nova palavra na praça. Depois de flexibilizar, reengenharia, desregulamentar, empregabilidade e outras tantas expressões que, com seu véu de neutralidade, ocultam um sentido profundamente perverso para aqueles que sofrem as consequências da sua aplicação ao mundo real, surgiu agora uma nova pérola do glossário destes novos e, não obstante, tão velhos tempos. Seu nome é enturmação, módica contribuição do governo Yeda Choque de Gestão Crusius ao glossário neoliberal. Vamos enturmar, pessoal! Vejam – ouçam – como soa simpático. Exala calor humano. Na comparação com as palavras citadas, não ostenta a frieza clean de aço escovado das demais. Evoca um sentimento de afetividade, de aproximação com o outro, de rompimento do casulo da individualidade, de encontro de finalidades comuns e de constituição do coletivo, da turma enfim.É ou não é?
A capacidade de atribuir um som ou, mais tarde, um signo para cada coisa, sentimento ou ação é elemento fundador da civilização humana. No balbuciar da humanidade, as primeiras palavras eram um esforço de fidelidade àquilo que designavam. Este intuito original perdeu-se no tempo. Hoje, palavras são armas que, muitas vezes, para sua maior eficácia, não devem guardar relação com aquilo que supostamente deveriam designar.Liberdade, democracia, ética, cidadania, por exemplo, foram de tal modo flexibilizadas que qualquer pessoa, partido ou organização que encarne seus exatos opostos pode encher a boca com a altissonância de cada um dos termos. O que se pode constatar, em ditaduras – como mostrou a novilíngua forjada por George Orwell no seu romance 1984, uma distopia onde paz significa guerra e amor é igual a ódio – ou democracias.
As palavras são tão importantes que se escolhe enturmação e não amontoamento. Ambas representam a mesma realidade mas enquanto a primeira a encobre de modo mais sutil e eficiente, a segunda expõe a sua essência. Enturmação, no fundo, significa fragmentação e evasão, o distanciamento dos professores da classe e dos alunos da escola.
As benesses da enturmação, como se sabe, serão recebidas pelas escolas públicas estaduais do Rio Grande do Sul. São 2,6 mil classes que poderão ser extintas e seus remanescentes enturmados. Os grupos serão fundidos em turmas de até 50 alunos. Isto inclui até mesmo turmas de séries diferentes na mesma sala aos cuidados de apenas um professor...
Diante do pasmo de especialistas em educação, a Secretaria de Educação/RS elencou as vantagens da mudança: “redução de professores não-concursados, racionalização de recursos humanos e economia aos cofres públicos”, conforme Zero Hora (30/07/2007). Nota-se que, as três vantagens não são de ordem educativa mas exclusivamente econômico/financeira. Em outros termos, a Secretaria que deveria defender com unhas e dentes a qualidade da educação, simplesmente promove uma intervenção de altíssimo risco, atuando, não só na prática mas no discurso, como se fosse não a pasta da Educação mas a da Fazenda...
Ficaria por isso mesmo, com esta enturmação dos interesses superiores da Fazenda com as tarefas inferiores da Educação, se a secretária da Educação, Mariza Abreu, não viesse, ao mesmo jornal, dois dias depois, enriquecer a resposta e agregar, enfim, uma “vantagem” pedagógica à transformação proposta. Ela acha que a inflação das turmas (desde que não sejam “muito grandes” mas com o “número adequado”) poderá melhorar a qualidade do ensino! Um dos estímulos para esta conquista seria que “a aprendizagem ocorre na relação dos alunos entre si e não apenas na relação de cada um com o professor”. Ou seja, mais alunos, mais interrelação, mais aprendizado. Perfeito. É a chave para abrir uma nova etapa da Educação no Estado, no país e no mundo.
Com esta o lema Revolução na Educação acaba de ser arrebatado das mãos da dupla Alceu Collares e Neusa Canabarro para aninhar-se no colo da secretária.
Zero Hora trata com naturalidade esta declaração de uma secretária de Estado cujo conteúdo é ofensivo à inteligência de alunos, pais e professores. Deveria ser ofensivo também à inteligência dos jornalistas. E a dos leitores, aos quais, ao menos teoricamente, deveria servir. Não houve um mísero editorial sobre o assunto. Compreende-se. É um tema menor. Diz respeito a apenas 1,3 milhão de alunos e algumas centenas de milhares de pais, professores e funcionários. Perdeu-se uma oportunidade de explicar pedagogicamente para leitores e eleitores como o termo choque de gestão se materializa de forma perversa na vida das pessoas.
Seria estranho se não se soubesse para que lado rufam os tambores de Zero Hora. E não se soubesse da existência de uma precedente enturmação entre as idéias e os ideais da mídia hegemônica e de tão chocante gestão.
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