"Polícia não foi feita para vigiar ninguém, foi feita para proteger”, defende PM de Sergipe
Para tenente-coronel da PM de Sergipe, a evolução das polícias têm de passar pelo reconhecimento dos policiais enquanto trabalhadores e pela aproximação com a população, especialmente os movimentos sociais
"Deixa essas pessoas trabalharem, deixa lutarem por essa terra e conquistar. A gente tem que aplaudir que alguém quer se fixar no campo". A declaração sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que mais parece ter partido de algum sociólogo ou intelectual de esquerda, veio, na verdade, de um representante de um segmento teoricamente nada simpatizante dos movimentos sociais: um policial militar.
Patrícia Benvenuti
O representante é o tenente-coronel da Polícia Militar do Sergipe Luiz Fernando Almeida. Policial militar há 20 anos, ele esteve em São Paulo nessa semana, para participar do seminário "Violência e Segurança Pública no Brasil: outros olhares, outros rumos", na quarta-feira (18) promovido, entre outras entidades, pela Associação Brasileira de ONGs (Abong).Em entrevista ao Brasil de Fato, Almeida falou sobre a necessidade da aproximação entre policiais militares e integrantes de movimentos sociais, discutiu as consequencias da política de repressão nas cidades, a possibilidade de desmilitarização da polícia e os desafios de construir uma polícia que proteja seu povo.
Brasil de Fato – Como é a situação da segurança pública em Sergipe?
Luiz Fernando Almeida - Talvez por ser o menor Estado da federação, com uma população pequena, é relativamente tranquilo, com índices de criminalidade não muito altos. Por semana, a média é de cinco a seis mortes violentas, decorridas de atropelamentos e mortes no trânsito. No campo, as relações estão bem pacíficas. É claro que tem a questão dos pistoleiros, de ameaças, de baderneiros, de sem terra. Mas também há uma política de proteção os sem-terra, que são mais vulneráveis diante do poder econômico.
BF – Você ajudou a organizar um encontro entre integrantes da Via Campesina e policiais militares em 2007. Poderia relatar como ele ocorreu?
Almeida - Esse encontro ocorreu em setembro de 2007 e foi resultado da minha vivência, meu contato principalmente com o Movimento Sem Terra (MST), desde 1995. A gente acreditava antes e acredita muito mais hoje que temos pontos em comum enquanto trabalhadores, como reconhecer esses trabalhadores rurais e esses trabalhadores policiais, para que que possamos promover a paz entre nós, que possamos buscar um reconhecimento de que somos todos trabalhadores, oriundos da mesma classe, pertencentes à mesma classe. E que temos que buscar cada vez mais um convívio respeitoso, fraterno, de reconhecimento da necessidade alheia. E dos movimentos sociais, em relação à polícia, é desfazer um pouco dos preconceitos. Não esquecer o passado, que serve para a gente não repetir as mesmas besteiras e erros, mas focar em um futuro que é muito importante que estejamos unidos.
BF – Como você vê o fato de um trabalhador, no caso o policial, muitas vezes de origem pobre, ter como tarefa reprimir os que são da sua própria classe?
Almeida - Todos os policiais são da classe trabalhadora, apesar de boa parte não ter essa consciência de classe, não se sentir pertencente a essa classe, e alguns, às vezes, se voltarem contra a própria classe em favor de uma classe dominante. É um trabalho que tem que ser feito, a gente tem buscado fazer.
Temos um curso de negociação de conflitos, onde, na parte que tange o conflito agrário a gente busca reunir os policiais, levá-los aos assentamentos e escolas do MST, fazer com que conheçam aquelas pessoas que estão ali, que percebam a diferença entre um assentamento e um acampamento, o quanto se evolui do acampamento para o assentamento, que se quebre aquele paradigma do sem terra baderneiro, vagabundo, que não tem o que fazer, que fica invadindo terra dos outros. Temos que fazer com que o policial possa enxergar a história da estrutura agrária desse país, como ela se deu. O que está pautando a cabeça das pessoas e da sociedade, de um modo geral, é a grande mídia que, obviamente abomina o Movimento Sem Terra, porque os que mandam e sustentam essa grande mídia são aqueles que tem outros interesses. Então, quem sabe que um eucalipto consome 20 litros de água por dia?
BF – E como foi a receptividade disso junto aos policiais?
Almeida - A grande vantagem é colocar as pessoas frente a frente para que elas conversem, para que se entendam. Eu levei três turmas para assentamentos, e os policiais voltaram maravilhados. Aí um lembra que trabalhou no campo, outro lembra que tem um pai que ainda está no campo, o da cidade diz: "eu pensei que fosse um bando de baderneiros". Então, a gente vê uma quebra no preconceito. Ninguém nunca vai falar o que passa uma mulher com seus filhos embaixo de um barraco de lona no sertão que faz 10 graus à noite e 50 de dia.
A conquista de um assentamento que se tornou produtivo e transformou a vida daquelas pessoas nunca vira notícia. Mas, quando você leva aquela pessoa que está impregnada da história dessa grande mídia para conhecer a realidade de um assentamento, para conhecer pessoas que, do pouco que tem, repartem com quem não tem, ele começa a enxergar outra coisa.
Deixa essas pessoas trabalharem, deixa conquistarem a terra, deixa lutarem por essa terra e conquistar. A gente tem que aplaudir que alguém quer se fixar no campo, quer criar polos de desenvolvimento regionais, quer vender sua produção, que quer que seu filho possa estudar, fazer um curso técnico e trabalhar na região, não tenha que ir para a cidade disputar emprego com ninguém. A luta é tão justa e tão injustiçada pelos poderosos e pela mídia, que os colegas tem que conhecer essa realidade.
BF – A relação entre o MST e a polícia, em Sergipe, é bastante diferente, por exemplo, da relação entre camponeses e da Brigada Militar no Rio Grande do Sul...
Almeida - É, são inimigos e o aparato policial no Rio Grande do Sul, e não só ele, mas os próprios setores da Justiça, do Ministério Público, estão querendo criminalizar e desconstituir o MST. Isso é político. Como aquele incidente no assentamento em Sarandi, o Nova Sarandi [em 2008], em que houve um mandado de busca e apreensão para procurar um par de chinelos, uns 200 reais e um relógio, coisa assim. Aí você vê as fotos e o desperdício de dinheiro público mobilizado.
Ali devia ter uns 500 homens ou mais para reprimir um Encontro. Eu conheço os Encontros do Movimento. Aí não está se tramando o fim do mundo ou a catástrofe, está se tramando positivamente o direito de luta, está se festejando a irmandade, a capacidade da gente poder se reunir. Ninguém está ali planejando assalto, formando quadrilha. O que se tem feito nos últimos anos, principalmente nesse atual governo do Rio Grande do Sul é um absurdo, muito triste. É o Estado reprimindo o movimento. E essa repressão não sai na grande mídia.
Agora, ninguém discute a questão das fronteiras, que é interesse das multinacionais diminuir a faixa de fronteira para plantar eucalipto. Ninguém discute soberania alimentar desse país. A gente não tem o poder que a grande mídia tem de massificar os pensamentos, mas eu acho que a gente tem que buscar. E é isso que a gente tem tentado fazer com aqueles que são, por lei, obrigados a cumprir a reintegração de posse, mas que tem que ser, por princípio, defensores dos direitos humanos, defensores dos trabalhadores e cumprir as reintegrações de posse com educação, com solidariedade e com a compreensão de que está fazendo porque não tem outro jeito, é mandado e tem que cumprir a lei.
BF – Existe uma pressão de escalões mais altos da Polícia para que essa proximidade entre PMs e integrantes de movimentos sociais não aconteça?
Almeida - Nos governos passados eu não tinha essa liberdade, mas atualmente eu propus, e o secretário de Segurança aceitou, o comandante também, e fizemos um encontro que reuniu 200 trabalhadores, sendo 100 policiais militares e 100 integrantes de movimentos sociais. Nós sentamos, ouvimos os palestrantes e depois fomos discutir entre nós, misturados, falando cara a cara, olho no olho, um esclarecendo a dúvida do outro. É o começo. É preciso que pelo menos a gente se reconheça para que se respeite, para que a gente não se tema, porque muitas vezes um lado tem medo do outro, por causa de um histórico de repressão e de uso da máquina pública e da estrutura de segurança do Estado que deveria proteger para reprimir. É isso que a gente está tentando mudar. Eu não tenho a menor ilusão de que se entrar um governo de direita esse contato vai voltar à estaca zero. Mas aqueles que conheceram, que olharam nos olhos uns dos outros, quando se encontrarem: "opa, conheço esse cara, não é o que estão dizendo". É nisso que eu aposto.
BF – E sobre a questão da segurança pública nas cidades, como você analisa essas políticas de repressão que são mais visíveis em estados como o Rio de Janeiro, de ocupação de morros e favelas?
Almeida - É a velha história: quando o Estado nada faz, aí manda a polícia, como se ela fizesse escola, virasse professor, fizesse saneamento básico, cuidasse da saúde das pessoas, que iluminasse as ruas, asfaltasse as ruas. Nossa Constituição é linda e avançadíssima, mas o cumprimento do que está ali está tão distante... Então, quando a polícia sobe o morro armada para enfrentar o tráfico, só quem ganha é a violência, e quem mais perde é a comunidade. Já há uma total ausência do Estado, há um domínio do tráfico ali dentro, que também é perverso. Aí fica diante de tiroteios, de balas perdidas, e obviamente do próprio medo do policial. Há aquele exemplo do menino João Roberto, que só foi notícia porque foi no asfalto, foi na Tijuca, que é um bairro de classe média do Rio de Janeiro. Se fosse no morro, era bala perdida.
A lei tem que ser muito rigorosa quando aplicada para alguém que tem obrigação de proteger a sociedade. Se acredita que tal ação não pode respeitar os marcos legais essa ação não é legal, então não faz. Melhor não fazer do que fazer e matar um inocente. Imagine uma ação policial onde há balas perdidas, que inocentes, trabalhadores que já tem uma vida extremamente sofrida perdem sua vida? E para uma mãe que perde um filho, para um pai que perde um filho, como é isso? Um filho que fica órfão de pai e mãe?
BF – E qual o peso da indústria da segurança sobre esse modelo repressivo?
Almeida - O Estado brasileiro sucateou o ensino público para privatizar. Hoje, se você quer ter um ensino de qualidade, com condições de cursar depois uma universidade pública, tem que passar por um ensino fundamental privado, caro, que seleciona e elitiza as universidades. Claro que tem iniciativas do governo federal, não estamos dizendo que nada está sendo feito. Mas a lógica de desconstrução da educação pública é a lógica de privatização da educação. Da mesma forma que a lógica da desconstrução da segurança pública é a privatização da segurança. Privatização dá dinheiro para alguém. É vigilância, armamento, venda de aparelhos, uniformes, material de proteção, de tudo, e o povo paga duas vezes. O povo não, aqueles que podem pagar também a privada.
BF – Sobre a formação do policial, costuma-se falar muito que o policial é mal-formado, mal-preparado. Como você avalia essas críticas, tanto do ponto de vista técnico quanto teórico?
Almeida - Não, não acredito nisso. Vivenciei uma melhora nos últimos 20 anos no ensino praticado nas organizações de ensino policial. Agora, a gente tem um problema muito sério na sociedade, de um modo geral, nos valores com os quais convivemos e somos criados. Às vezes, a pessoa tem no seu íntimo uma vontade de reprimir da mesma forma como foi reprimida durante muito tempo, uma violência já incutida pela violência sofrida, e vai reproduzir isso aí. É um processo difícil de quem sofreu violência abrir mão da violência para buscar a solução daquilo através da paz, porque a nossa sociedade de uma forma geral é muito violenta.
BF – E quanto à desmilitarização das polícias, você é a favor?
Almeida - Tanto faz. É preciso uma polícia que proteja o seu povo. Se ela vai usar farda, se não vai usar, acho que algum tipo de identificação ela vai ter que ter para um trabalho ostensivo. Agora para chamar de diretor, coronel, planejador, capitão, executor, tenente, sargento, para mim tanto faz. A hierarquia e a disciplina tem que existir em qualquer lugar e em qualquer instituição de forma mínima para que funcione. Que bom seria se cada um cumprisse com seu dever, não precisasse ser mandado, mas estamos muito longe disso. Essa visão mais "anárquica", sem Estado, sem polícia, sem nada, pessoas convivendo pacificamente, cada um fazendo o seu, é utópico. Pode ser que a humanidade, um dia, chegue a ela. Mas ela parece estar caminhando para o lado contrário.
BF – Já sobre uma possível desvinculação total da PM com o Exército, você concordaria?
Almeida - Sou totalmente a favor. Com todo o respeito ao Exército brasileiro, o qual servi e aprendi muitas coisas boas, que me serviram muito, é uma casa de pessoas de grande valor, independente dos desvios ideológicos patrocinados pelo golpe militar, pelos Estados Unidos, pela doutrina de segurança nacional. O Exército brasileiro, eu acho, já prestou bons serviços e pode ainda prestar ao povo brasileiro, tem pessoas valorosas, de caráter, mas não tem nada a ver com polícia, são coisas totalmente diferentes. Porque o Exército tem, por obrigação, a defesa do nosso território, da nossa soberania, que é uma missão muito nobre, que tem que estar acima da política, dos partidos políticos, governantes, antes de tudo. E a polícia tem que proteger seu povo, tem que proteger o cidadão, tem que garantir o ir e vir do cidadão, as suas liberdades. Polícia não foi feita para vigiar ninguém, foi feita para proteger, e é assim que ela tem que agir, como protetora do seu povo, porque ela faz parte desse povo.
BF – Você acredita então que o treinamento de policiais militares no Haiti para realizar ocupações em favelas do Rio de Janeiro caminha ao contrário disso...
Almeida - Exato. Intercâmbio com Exércitos de outros países, somente as chamadas Forças Especiais, é contramão, eu não tenho dúvida de que é contramão e de que existem interesses no nosso tipo de atuação, como o país está preparado para defender seu território. Ali para mim é um grande laboratório. Porque eles sabem que, em termos de defesa territorial de selva, nosso Exército é o melhor do mundo, está preparadíssimo. Teve uma época em que até perguntaram, "mas trazem os oficiais para cá para verem como é, para eles verem que não é fácil”. Se eles quiseram entrar na nossa Amazônia, não vai ser fácil, não vai ter moleza.
BF – Ainda sobre uma possível desvinculação das polícias militares com o Exército. Para a população, que benefícios diretos isso traria?
Almeida - Eu acho que essa desvinculação tem que ser ideológica. Não importa que tenhamos contato, que troquemos informações nem que nos juntemos ao Exército brasileiro para proteger nosso território dentro do nosso trabalho e dentro daquilo que temos que fazer. Mas a visão ideológica da ação militar é diferente da visão ideológica da visão policial. A visão militar tem inimigo, no campo de batalha o inimigo está na frente, larga para cima e mata o quanto possível. Qual o inimigo das polícias? Os cidadãos? Temos um eventual oponente que é aquele que está transgredindo a lei, que é nossa obrigação detê-lo e entregá-lo à autoridade judiciária. Nada além disso.
BF – E para os policiais?
Almeida - Obviamente existem as mais diversas opiniões, creio que a maioria contrária, porque, de certa forma, há um certo status, as pessoas enxergam um certo status. Não é o meu caso. Tanto faz você me chamar de coronel, agente, diretor, qualquer coisa, desde que eu seja tratado com respeito e trate com respeito qualquer nome está bom, desde que a gente cumpra a nossa obrigação.
BF – Como você avalia o fato de os policiais militares não poderem se organizar em sindicatos?
Almeida - Essa cultura também é herdada do Exército, que é uma força totalmente diferente. Então se há uma força de natureza civil, ela pode obviamente se sindicalizar. O que eu quero colocar é que não dá para manter as duas coisas. Querem o status de militar, a prerrogativa de militar e os direitos dos civis. Uma coisa ou outra.
BF – Você é a favor da unificação das polícias?
Almeida - No dia em que a gente tiver uma polícia legal, no sentido de legalista, estritamente cumpridora do que está escrito na lei - porque a lei já não é tão boa assim para o conjunto da população em geral, mas violada é pior ainda -, eu acho que aí a gente tem um caminho para a unificação. Mas diante do que acontece hoje, acho que é até melhor para o cidadão que ele tenha um duplo grau de ciclo policial, para que até um possa rever o que o outro fez.
BF – Existe alguma Polícia Militar, aqui no Brasil, que seja referência e que poderia ser seguida?
Almeida - No campo de direitos humanos e de negociação de conflitos, hoje, sem dúvida alguma a polícia que melhor se relaciona com a sociedade e é mais respeitada é a Polícia Militar de Alagoas. Há um trabalho de muito tempo, que conseguiu ser contínuo, coisa que em Sergipe nós não conseguimos. É um trabalho que atravessa vários governos, e é uma boa referência nesse campo. Obviamente que nesse campo de atuação preventiva pode haver uma melhor, outra pior, mas o importante é os policiais enxerguem de onde vierem e que dêem um tratamento digno às pessoas que vão abordar, até mesmo àquelas que vão enfrentar, eventualmente.
BF – Quais os desafios da Polícia Militar hoje, como um todo, quais deveriam ser suas prioridades?
Almeida - Eu acredito que o melhor caminho das polícias militares é a construção de elos com as comunidades, uma construção de uma polícia comunitária verdadeira, que seja reconhecida e seja efetiva nos locais onde atua, que o cidadão comum, que o morador do bairro conheça aquele policial, que o comerciante conheça aquele policial que está ali no centro comercial, que eles possam conversar, que eles possam saber quem é quem, que exista um espaço de mediação onde ambos possam atuar até juntos dentro de uma comunidade para evitar e prevenir problemas maiores. Eu só vejo a saída para as polícias, principalmente para a Polícia Militar, junto ao seu povo. O dia em que nós tivermos efetividade, que formos reconhecidos e reconhecermos os nossos irmãos e os nossos cidadãos que estão no convívio diário com a gente, vamos ter uma polícia que o povo vai ser o primeiro a defender. Não vai precisar se sindicalizar porque quem vai pedir salário para ele é o povo. Mas, para isso acontecer, é preciso que a gente queira, porque se deixar e ficar esperando que isso caia do céu ou da estrutura do Estado, não vai ter.
Quem é: Luiz Fernando Almeida é Tenente-coronel da PM-Sergige, pós-graduado em Negociação de Conflitos Agrários e em Gestão Estratégica em Segurança Pública. Natural do Rio de Janeiro, há 19 mora no Sergipe.
0 Comments:
Post a Comment